terça-feira, 23 de agosto de 2011

A luz da Mimesis: uma breve história




Uma sala às escuras, um público que olha a tela branca e espera o surgimento de uma imagem luminosa e animada – se imaginarmos estar em algum lugar entre os séculos XII e XVII, que visão correta. [1]

Conta a lenda que o imperador Wu Ti, da dinastia Han, triste pela morte de sua bailarina predileta, ordenou ao mago da corte que a trouxesse de volta do Reino das Sombras. Caso desobedecesse, a punição era a morte. Utilizando uma pele de peixe macia, o mago, com criatividade, modelou a figura de uma bailarina. "Estendeu uma cortina branca armada contra a luz do sol, alcançando uma boa projeção de silhuetas. Estava feito, no ano 121, um Teatro de Sombras.[2]
Essa pequena narrativa sobre o  teatro de sombras[3] ilustra a sedução que as imagens em movimento despertam no imaginário humano em todas as épocas.
A projeção dos raios luminosos começou a ser estudada  quando "Aristóteles observou a passagem de um feixe de luz através de uma abertura qualquer."[4] Desde o olhar aristotélico, séculos se passaram antes que o homem pudesse aplicar e reproduzir esse fenômeno observado.

Aristóteles (384-322 a.C) observou a imagem do sol projetada no solo em forma de meia-lua ao passar seus raios por um pequeno orifício entre as folhas de um plátano[5] e concluiu que, quanto menor fosse o orifício, mais nítida era a imagem. Surgiu assim a primeira descrição da câmara obscura.[6]

Após mais de mil anos, um sábio árabe conseguiu tornar realidade o que Aristóteles havia percebido. "O princípio da câmara escura."[7]  

Uma das comprovações mais antigas que temos da sua utilização prática, segundo o historiador alemão Klaus Opten Hoefel, é da observação de um eclipse solar pelo sábio árabe Ibn Al Haitam, na corte de Constantinopla no ano 1038.[8]

Como o Sol observado diretamente poder ser prejudicial à visão, a câmara escura se tornou o método perfeito para o estudo solar. Vítima desse efeito, o cientista Guillaume de Saint-Cloud observou um eclipse no dia 5 de junho de 1285 e teve a visão prejudicada por vários dias. Após esse acidente, passou a estudar o fenômeno apenas com o uso da câmara escura. Segue uma curiosa passagem na qual descreve a técnica.

Faça uma abertura no telhado ou na janela de uma casa fechada, direcionada para a parte do céu onde aparecerá o eclipse, aproximadamente do tamanho do orifício que se faz em um tonel para se extrair o vinho. Quando a luz do sol entrar por esta abertura, coloque a uma distância de 20 ou 30 pés do orifício alguma coisa plana, por exemplo uma tábua, e verá que os raios de luz formam uma imagem circular sobre a tábua, mesmo se a abertura for angular.[9]

A câmara escura não servia à ciência somente no campo da astronomia. O cientista e artista Leonardo da Vinci[10] (1452 - 1519) a utilizou para medir a distância entre o Sol e o nosso planeta. "Da Vinci não abandonou o velho método empregado por Bacon de estudar o Sol sem queimar os olhos; ele contava utilizar os raios que penetravam pela abertura da câmara escura para calcular a distância exata entre o Sol e a Terra."[11]
Outro italiano, chamado Gerolamo Cardano (1501-1576), procurando melhorar a qualidade da imagem refletida, aperfeiçoou o sistema. Adicionou uma lente biconvexa na abertura por onde a luz entrava. Ele imitou, com a experiência, o que Platão descreveu no texto mito da caverna.[12]

Se lhe agrada ver o que se passa na rua quando o sol brilha, coloque um disco de vidro na janela e, estando a janela fechada, verá imagens projetadas através da abertura na parede oposta; mas as cores serão suaves. Coloque então um papel muito branco no lugar onde as imagens incidem.[13]

O físico Giovanni Battista della Porta (1540 - 1615) exibiu diversas paisagens usando lentes sofisticadas, mas foi além do uso normal da câmara escura. Com a técnica de pintura em vidro, incluiu nas projeções um cenário elaborado. Depois acrescentou atores e música. Realizava o roteiro de cada apresentação, criando um espetáculo multimídia, uma celebração das artes para comemorar a captura do movimento pelo homem. A facilidade de trânsito entre a arte e a ciência foi essencial para o aperfeiçoamento da técnica da projeção.

Graças a ele, a câmara escura, subitamente desviada de sua vocação científica, torna-se um "teatro ótico", um método de iluminação capaz de projetar histórias, cenários fictícios, visões fantasmagóricas. Deixou os domínios da ciência e da astronomia para mergulhar nos do artifício, da representação, do maravilhoso, da ilusão. [14]

Della Porta inventou o Teatro Ótico,[15] desviando o uso prático e científico no qual a câmera era utilizada. A projeção se transformou em espetáculos dinâmicos, encantando o público que se reunia no interior da caixa escura. Do lado de fora, atores reproduziam os movimentos projetados. Os músicos tocavam acompanhando as imagens. Os atores recitavam o texto. O teatro ótico, portanto, reunia a técnica da projeção ao teatro, literatura, música, dança e pintura.

As imagens de Della Porta, corretamente projetadas graças às lentes de cristal e ao espelho, que  ele conhece desde  1558,  apresentavam atores  de verdade,  com  cenário e músicas de acompanhamento.[16]

Della Porta aliou os princípios da câmera escura a jogos de espelhos para a criação de monstros, em um espetáculo aterrorizante, desviando a imagem de seu sentido denotativo. 

Seu objetivo era atemorizar os que o visitavam, através de espelhos deformantes ou pintados, ou surpreendê-los com projeções inesperadas.(...) o trabalho de Della Porta descrevia espelhos que alongavam ou encurtavam os rostos, tornavam os homens mais velhos ou mais jovens, deformavam-nos e desfiguravam-nos, ou acrescentava-lhes cabeças de asno, bicos de grou, focinhos de porco. Os métodos para tais efeitos foram detalhados na Magiae naturalis.[17]

As figuras iniciavam sua evolução em direção ao estado mimético perfeito do movimento. O jesuíta francês Jean Leurechon (1591- 1670) considerava a câmara escura uma das mais belas realizações da ótica pela experiência proporcionada, sobretudo pelo ato de mover-se.

Há sobretudo o prazer de ver o movimento dos pássaros, dos homens ou de outros animais, e a agitação das plantas sopradas pelo vento [...] Essa bela pintura, além de se apresentar em perspectiva, representa ingenuamente bem o que pintor algum jamais conseguiu imprimir em sua tela, a saber, o movimento contínuo de um lugar a outro.[18]

A arte da projeção conferiu novo ânimo a uma série de retratistas, pintores e desenhistas, que forneciam sua técnica como reprodutores de imagens. Diversos assuntos eram ilustrados sobre a superfície do vidro. Athanasius Kircher[19] (1501-1576), em seu livro A grande arte da luz e da sombra, editado em 1646, detalha a relação entre o pintor e a câmara escura portátil.

Kircher descreveu uma grande câmara escura destinada aos pintores de paisagem e a ser colocada a céu aberto. Dentro dela, estendeu uma parede de papiro. O pintor tinha apenas de entrar na câmara para desenhar no papel as paisagens externas.[20]

A pequena câmara escura portátil permitia aos pintores o aperfeiçoamento de suas habilidades. Ao mesmo tempo em que reduzia o prazo levado para a produção de cada paisagem, diminuía o tempo necessário para a formação de mão de obra. O lucrativo espetáculo de projeções que despertou o interesse do público de imediato necessitava de novos profissionais para suprimir as encomenda de novas apresentações.
No diálogo entre técnica, ciência e artes que a mimesis da luz operava. Por causa da dependência do sol como fonte de iluminação, os espetáculos eram realizados pela manhã ou à tarde. Kircher foi o primeiro a pensar em uma "luz artificial".  Sua técnica  consistia em acender  uma vela no interior de um pequeno tonel de vinho. Com ajuda de espelhos, a luz era refletida e concentrada por uma lente biconvexa, conseguindo bons resultados. Era o princípio da Lanterna Mágica descrito em detalhes.

Era uma grande caixa de madeira, (podendo com certeza abrigar um homem de pé), munida de uma chaminé "por onde a fumaça da lâmpada poderá escoar". A lâmpada, colocada sobre um suporte ou suspensa por fios de ferro no centro da caixa, ficava alinhada com uma abertura feita na parede da caixa, e um longo tubo estendia-se dessa abertura. "Um vidro lenticular da melhor espécie" era fixado na extremidade do tubo que ficava dentro da caixa, sobre uma espécie de passa-vistas, "coloca-se uma lâmina de vidro bem transparente, sobre o qual se pinta tudo o que de bom lhes parecer.[21]

A necessidade da luz do sol para a realização da projeção já não era imprescindível. Aos poucos o tamanho da lanterna mágica foi diminuindo e foram implementados aparatos mecânicos para realizar o movimento na imagem.  Com uma sequência de desenhos, era possível visualizar a representação de um trote de cavalo, ilustrado por pintores.




A imagem é "fixa" ou "animada", pois a placa comporta um sistema mecânico que permite dar movimento ao assunto representado. Basta introduzir a placa de ponta cabeça no passa-vistas e, na frente do foco luminoso de uma vela ou de uma lâmpada a petróleo, [...] para que as imagens multicoloridas brilhem sobre a parede branca.[22]

Caminhando entre a dualidade do processo científico e da arte, a câmara escura e a Lanterna Mágica se tornaram mecanismos fundamentais para a prática pedagógica que utilizava a imagem como prática de ensino.

Alguns anos após a invenção da lanterna mágica, que Kircher descreve na obra Ars Magna Lucis et Umbrae, "o dinamarquês Walgenstein substituiu, em 1660, o processo de iluminação por luz artificial. Apesar de ter constituído inicialmente uma forma de diversão, foi desde muito cedo utilizada como recurso pedagógico.[23]

A projeção era também utilizada pela ciência, principalmente nas abordagens de temas complexos pesquisados pelos cientistas. A novidade da projeção de imagens atraía muitos curiosos, que apareciam nas palestras científicas, em jornais visuais e em toda sorte de eventos. Pelo fato de atrair público e tornar compreensíveis assuntos complexos, a projeção foi pedagogicamente difundida pelo uso, contribuindo com a disseminação da própria ciência.

Em 1852 já acalentava a idéia de usar as projeções para popularizar as ciências (idéia muito antiga...). Só a lanterna mágica seria capaz de atrair o público e prender-lhe a atenção; as mais difíceis explicações se tornariam compreensíveis quando ilustradas com imagens luminosas.[24]

Similares a esses dois instrumentos, muitos outros surgiram na mesma época. Cito as caixas ópticas, fantascópio, panorama, diorama, traumatrópio, anortoscópio, fenaquitiscópio. Com os aparatos técnicos, era possível capturar o movimento e projetá-lo, faltando apenas fixar as imagens produzidas pelos equipamentos óticos em papel. O objetivo era ultrapassar a perfeição mimética dos pintores e desenhistas na técnica de copiar a realidade. Surgia então a fotografia.




[1]MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Editora SENAC; São Paulo: Unesp, 2003, p. 31.
[2]O TEATRO de Sombras. Disponível em:  <http://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_de_sombras> Acesso em: 25 ago. 2008.
[3]Teatro de Sombras surgiu na China, por volta de 5.000 a.C e consiste em uma projeção, sobre paredes ou telas de linho, de figuras humanas, animais ou objetos. O espetáculo costuma atrair multidões graças ao seu peculiar encanto artístico. Disponível em: <http://inusitatus.blogtv.uol.com.br/2007/05/21/o-incrivel-teatro-de-sombras> Acesso em: 25 ago. 2008.
[4]MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Editora SENAC; São Paulo: Unesp, 2003, p. 32.
[5]Plátano - Os plátanos são árvores do gênero Platanus, da família Platanaceae, as quais são nativas da Eurásia e América do Norte. Fonte: Wikipedia. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Plátano>. Acesso em: mar. 2009.
[6]PINTO, Cláudia Alves do Amaral. A Fotografia - História e origem. Disponível em: <http://www.espigueiro.pt/reportagem/428fca9bc1921c25c5121f9da7815cde.html>. Acesso em: 25 ago. 2008.
[7]O princípio da câmara escura é simples: se fizermos um pequeno orifício na parede ou  na janela de uma sala mergulhada na escuridão, a paisagem ou qualquer objeto exterior serão projetados no interior da sala, na parede oposta ao orifício. Se a tela for feita  com um pedaço de papel ou um pano branco, a imagem fica ainda melhor. Se a tela estiver perto da abertura, a imagem fica pequena, porém nítida; se estiver distante, ela aumenta, mas perde em definição e colorido. MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Editora SENAC; São Paulo: Unesp, 2003,  p. 32.
[8]HARRELL, Thomaz. A Imagem Virtual. História do Cinema. p. 2. Disponível em:                                                    < http://www.tharrell.prof.ufu.br/> Acesso em: ago. 2008.
[9]MANNONI, Laurent, op. cit.,  p. 33.
[10] DA VINCI, Leonardo é considerado como um arquétipo do Homem da Renascença. Pouco se sabe sobre a sua vida pessoal e ele mesmo parece ter sido extremamente reservado no que respeita às suas relações mais intímas. No entanto, tem sido investido bastante esforço de pesquisa e especulação sobre este aspecto da sua vida, tanto pelo fascínio que o seu génio artístico e científico exerce, como pelo seu aparente magnetismo pessoal. Wikipedia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Vida_pessoal_de_Leonardo_da_Vinci>. Acesso em: fevereiro de 2008.
[11]Ibid., p. 34.
[12]PLATÃO. O mito da caverna. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito_da_caverna> Acesso em: mar. 2009.
[13]MANNONI, Laurent, op. cit.,  p. 33.
[14]MANNONI, op. cit.,  p. 35.
[15]Giambatista Porta, que teve sua “magiae naturalis sine de miraculis rerum naturalium” publicada em 1589, afirmava que o reino da mágica natural incluía não só os poderes mágicos das imagens, pedras, plantas e influências celestiais, mas também experimentos químicos e óticos. Porta apresentava então um teatro ótico usando uma câmara escura para criar um entretenimento visual variado e móvel. HERTHEL, Nanda. História do cinema: o início. Disponível em: <http://www.artigos.etc.br/historia-do-cinema-o-inicio.html>. Acesso em:  ago. de 2009.
[16]Ibid., p. 37.
[17]Ibid., p. 45.
[18]Ibid., p. 39.
[19]Athanasius Kircher (1601-1680), jesuíta de origem alemã, foi ordenado sacerdote em 1628 e fixou-se em Roma em 1635. Além da lanterna mágica, inventada em 1650, Kircher é considerado o pai da história da música e inventor de duas máquinas, uma para escrever e a outra para compor música. In: OLIVEIRA, Henrique J. C. Os meios audiovisuais na escola portuguesa. Braga: Universidade do Minho, 1996, p. 49-52.
[20]CHÉRUBIN d´Orleans. La dioptrique oculaire. Paris: T. Jolly & S. Bernard, 1671, p. 285-288, apud MANNONI, op. cit.
[21]MANNONI, op. cit.,  p. 79.
[22]Ibid., p. 58.
[23]OLIVEIRA, Henrique J. C., op. cit., p. 49-52.
[24]MANNONI, op. cit., p. 271.

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