terça-feira, 23 de agosto de 2011

A Mimesis pela luz: a fotografia




Todo mundo ruminou, em algum momento, o velho lugar-comum sobre a foto, atingindo uma exatidão mimética tão perfeita que destrona a pintura e, ao mesmo tempo libera para ela a via rumo à abstração.[1]

                     Jacques Aumount


A primeira fotografia foi realizada pelo francês Joseph-Nicphore Niepce[2] em 1827.
A imagem fixou-se em um papel após oito horas de exposição ao sol. Este processo ficou conhecido pelo nome de Heliografia[3]. O objetivo agora era reduzir o tempo de exposição. Niepce se associou ao pintor, cenógrafo e gravurista Jaques Mandé Daguerre em busca de uma solução. Com o falecimento de Niepce, o químico Dumas se tornou parceiro de Daguerre e, em 1839, apresentaram os progressos da pesquisa. Novamente a ciência e a arte se encontram no desenvolvimento de uma técnica, dessa vez com o objetivo de desenvolver a fotografia para grafar a luz.

Após vários anos de experiências, em agosto de 1839, Daguerre apresentou um novo processo à L'Acadêmie des Sciènces et Beaux Arts de Paris. O processo provou-se revolucionário, fez imediato sucesso e ficou conhecido como Daguerreotipia.[4] Por solicitação do próprio Daguerre, a técnica foi divulgada livremente ao mundo sem quaisquer direitos autorais.[5]

Na mesma época o inglês William Henry Fox Talbot[6] desenvolveu um processo fotográfico muito mais barato e prático. Diferente da daguerreotipia, o processo de Talbot utilizava um negativo de papel que permitia a fotografia em série. A única desvantagem é que a imagem das cópias de Talbot não possuía a mesma qualidade dos daguerreótipos.

Mesmo assim, o progresso feito por Talbot foi popular. Em 1841 a Talbotipia já conseguia concorrer em popularidade com a Daguerreotipia. Deve-se dizer que houve processos e acusações de plágio entre ambos os rivais, mas Talbot perdeu quase todas e não viu jamais os lucros do seu trabalho. Anos mais tarde, o francês Gustave Le-Gray refinou a técnica imergindo os negativos de papel num banho de cera para torná-los mais transparentes.[7]

A prática fotográfica foi simplificada a partir de 1871. O inglês Richard Leach Maddox utilizou emulsão de gelatina para fixação da imagem. O processo foi aperfeiçoado e ficou conhecido como chapa seca.

A invenção da chapa seca foi de tremenda importância para a fotografia. Os fotógrafos poderiam ficar muito mais à vontade para se concentrar no assunto, deixando todos os preparativos complicados de lado. Evidentemente a chapa seca beneficiou muito mais a fotografia externa. A época da chapa seca é caracterizada principalmente pelos negativos de vidro, que também eram usados nos processos úmidos. Entre 1871 e 1885 muita pesquisa foi feita para encontrar novos suportes para a emulsão seca, entre os quais o nitrato de celulose foi um dos preferidos.[8]


A técnica fotográfica obteve um avanço surpreendente entre os anos 1850 e 1880. Surge, nesse período, a cronofotografia, uma série de fotografias produzidas em um curto período entre elas, possibilitando a pesquisa do movimento. O primeiro a alcançar resultados positivos nessa área foi Edward Muybridge (1830-1904). No ano de 1873, Edward iniciou suas experiências procurando registrar a corrida de um cavalo. Para cumprir seu objetivo, utilizou 24 câmeras fotográficas dispostas em sequência para saber se o animal levantava as quatro patas do chão durante  o galope.

Em São Franciso, o sr. Muybridge causou grande sensação com suas fotografias instantâneas de animais em movimento. A ciência do zootrópio recebe assim uma bela ilustração com o auxílio da arte fotográfica; pois em suas fotografias é possível obter cada fase, por ligeira que seja, do movimento de um cavalo, ou do vôo de um pássaro, por exemplo. Temos aqui, talvez, uma nova aplicação da fotografia à ciência fisiológica.[9]


A publicação das imagens de Muybridge conquistou importância nas pesquisas sobre a animação fotográfica. Seus estudos auxiliaram áreas como a veterinária e a medicina. Estimulado pelas ações de Muybridge, o fisiólogo e inventor francês Dr. Jules Eienne Marey utilizou a cronofotografia como um método investigativo da realidade no final do século XIX.

Isto aponta para uma questão: as cronofotografias são um novo suporte para um método de investigação que já estava presente desde os primeiros trabalhos desse cientista. Reforça-se a idéia de que o uso da fotografia (ou dos sistemas audiovisuais) para a revelação de fenômenos e para a produção de conhecimento sobre a realidade deve ser precedido por um método e principalmente por uma postura epistemológica que se coloque à frente dos aparelhos e procedimentos utilizados.[10]


 Após reproduzir a imagem, o homem procurava fotografar o próprio tempo. Se é verdadeiro que a ciência movimentou a imagem, pode-se afirmar que a imagem em movimento impulsionou as pesquisas científicas, tornando-se uma técnica essencial para a elaboração do discurso científico e do discurso artístico.
O conceito mimético, que desde Aristóteles dominou o campo da arte, foi abalado devido à reprodução instantânea da imagem. Instalava-se um paradoxo na arte. Se, por um lado, os artistas exploravam a nova tecnologia, desviando a imagem de seu sentido objetivo,[11] os cientistas estavam preocupados utilizando-a em pesquisas científicas.

Todavia, o que se pretende demonstrar aqui é que, no caso de Marey, além de apenas mais um aparato técnico-fotográfico em desenvolvimento, tratava-se de uma abordagem investigativa mais ampla, que também poderá ser encontrada até hoje, em atividades documentárias, científicas ou não-científicas, que se desenvolveram posteriormente.[12]

Não podendo o homem influenciar diretamente na elaboração da imagem, a fotografia passou a ter o valor de representação do real. Roland Barthes, em A câmara clara: nota sobre Fotografia, escreve sobre o dilema de ela transitar “entre duas linguagens - uma expressiva, outra crítica."[13] Com a democratização do processo fotográfico, em pouco tempo a fotografia é usada artistítica e cientificamente. Mesmo que sua história tenha começado com uma ilusão,[14] no início a nitidez das imagens causava espanto às pessoas.

Um aparelho que podia rapidamente gerar uma imagem do mundo visível, com um aspecto tão vivo e tão verídico como a própria natureza. (...) As pessoas não ousavam a princípio olhar por muito tempo as imagens por ele produzidas. A nitidez das fisionomias assustava, e tinha-se a impressão de que os pequenos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de ver-nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros daguerreótipos.[15]   

De acordo com Diana de Abreu Dobranszky, no seu ensaio A fotografia entre a arte e a máquina, na Antiguidade, a arte e a ciência se encontravam  na mesma categoria, techné, que englobava toda atividade que, por seguir regras, poderia ser ensinada. 

Quando a fotografia surge na primeira metade do século XIX, ciência (campo da técnica e do rigor metodológico e matemático) e arte (campo de criação e da expressão) transitam em dimensões e bases teóricas completamente distintas. A arte que abandonou a rigidez da doutrina de imitação da natureza para exercitar-se na fluidez da expressão e dos sentimentos precisou lidar com uma nova forma de produção que parecia reportar-se à doutrina abandonada no século XVIII. Da mesma forma teve que lidar com uma mecanicidade que parecia ter maior relação com a ciência do que com a arte, mas cujos operadores queriam que suas imagens fossem reconhecidas como criação artística. [16]

Assim, a partir da invenção da fotografia, é possível ao discurso fotográfico servir ao campo de expressão (arte) e ao campo da verdade (ciência). Assemelha-se, portanto, ao funcionamento da língua, que pode ser subjetiva (poética) ou objetiva (prosa).
A humanidade inicia a sua escrita visual em movimento quando o homem domina a  técnica da projeção, conseguindo imprimir o instantâneo da imagem pela ótica da câmera. O texto, o pensamento e a informação, que durante os séculos foram baseados em um sistema de escrita, tecidas no texto ou transmitidas pela oralidade, encontram na imagem outra forma possível de escrita e propagação. A imagem na tela se desenvolveu como a palavra, entre o sentido objetivo e subjetivo, entre a ciência e a arte, conferindo à linguagem audiovisual a  importância como escritura de imagens.
Se, na literatura, o leitor forma imagens, sons, movimentos a partir de narrativas que possuem como apoio de partida o texto, no audiovisual o apoio de partida dá-se com as imagens e os sons em movimento, que então encontra no espectador sua narrativa final. O processo é o mesmo; o que é modificado é o seu sentido de origem.  A escrita parte do texto para obter imagens, sons e movimento. No audiovisual o movimento, as imagens e o som nos fornecem o “texto escrito”. Fecha-se um importante ciclo quando as imagens em movimento podem sustentar um discurso, uma narrativa própria.  A mimesis do movimento estava criada.


[1]AUMONT Jacques. O Olho Interminável [cinema e pintura]. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p. 37.
[2] Joseph Nicéphore Niépce foi um inventor francês responsável por uma das primeiras fotografias. Niépce começou seus experimentos fotográficos em 1793, mas as imagens desapareciam rapidamente. Ele conseguiu imagens que demoraram a desaparecer em 1824 e o primeiro exemplo de uma imagem permandente ainda existente foi tirada em 1826. Ele chamava o processo de heliografia e demorava oito horas para gravar uma imagem.Wikipedia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Nicéphore_Niépce>. Acesso em: outubro  de 2008.
[3] Apesar desta imagem não conter meios tons e não servir para a litografia, todos os historiadores nesta área a consideram como a primeira fotografia permanente no Mundo. Este processo, atrás descrito, ficou conhecido como Heliografia - gravura com luz solar, tendo o inconveniente da baixa velocidade de captação e pouca qualidade de imagem.In:  A Primeira FOtorafia - A Heliografia de Niépce.  Disponível em: <http://camerafotografica.blogspot.com/2007/02/primeira-fotografia-heliografia-de_18.html>. Acesso em: julho de 2008.
[4] O francês Louis Daguerre foi quem primeiro produziu uma imagem fixa pela ação direta da luz. Em 1835, em seu laboratório, Daguerre estava manipulando uma chapa revestida com prata e sensibilizada com iodeto de prata que não apresentava nenhum vestígio de imagem. No dia seguinte, a chapa, misteriosamente, revelava formas difusas. Ele concluiu que o vapor de mercúrio proveniente de um termômetro quebrado teria sido o misterioso agente revelador. Daguerre aprimorou o processo passando a utilizar chapas de cobre sensibilizadas com prata e tratadas com vapores de iodo. O revelador era o mesmo mercúrio aquecido; e o fixador, uma solução de cloreto de sódio. O processo de Daguerre foi apresentado em 19 de agosto de 1839 perante uma sessão da Academia Francesa de Ciência e Belas-Artes pelo astrônomo e deputado François Aragó (1786-1853).  Ao tornar o invento domínio público, o governo francês concedeu uma pensão de 6 mil francos a Daguerre.
[5]HARRELL,Thomaz. A Imagem Virtual. História do Cinema. Disponível em:                                                   < http://www.tharrell.prof.ufu.br/>. Acesso em: ago. 2008. p. 5.
[6] William Henry Fox-Talbot  foi um escritor e cientista inglês, pioneiro da fotografia. Usava a câmera escura para desenhos em suas viagens. Talbot era um homem bem mais discreto e recolhido que Daguerre. Ele vinha pesquisando a fixação da imagem da câmera escura há tempos. Extremamente erudito, com múltiplos interesses investigativos, seus conhecimento se estendiam da matemática, área em que era especialista, às línguas orientais, passando pela física e pela química. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Henry_Fox_Talbot>. Acesso em outubro de 2008.
[7]Ibid., p. 6.
[8]Ibid., p. 9.
[9]Le moniteur de la Photographie. Paris, 16 de abril de 1879, apud MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Editora SENAC; São Paulo: Unesp, 2003, p. 310.
[10]SOUZA, Hélio Augusto Godoy. Marey e a visibilidade do invisível. Disponível em:                                               < http://hgodoy.sites.uol.com.br/Artigos/marey.pdf>. Acesso em:  26 ago. 2008.
[11]Tornando-a consequentemente metafórica e, portanto, artística.
[12]SOUZA, Hélio Augusto Godoy, op. cit. Não paginado.
[13]BARTHES, Roland. A câmara Clara: nota sobre Fotografia.  Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 18.
[14]Para ser realizada, a primeira fotografia, em 1827, pelo francês Josepg-Nicphore Niepce, teve que permanecer em exposição durante oito horas. A foto foi produzida de sua janela e mostrava a vista do quintal de sua casa. Como o material fotográfico é sensível à luz, entre a manhã e a tarde, o sol se deslocou, e aparecem no resultado final dois focos intensos de luz, como se existissem dois sóis. BERINO, Aristóteles de Paula; VICTORIO, Filho. Escrever com luz. Rio de Janeiro. Jornal Educação & Imagem, v. 2, 2007, p. 1.  
[15]BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: editora Brasiliense, v. II, p. 95, 1993. (Obras Escolhidas).
[16]DOBRANSZKY, Abreu Diana. A Fotografia entre a arte e a máquina. Revista Studium, Unicamp, v. 21, 2005.

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